20 textos_20 anos na blogosfera

[Reedição de alguns textos destes 20 anos na blogosfera]
by_aflores


[04/20]

25 de Abril sempre!

Desço as escadas em direcção à rua. A saca do pão e o dinheiro estavam como sempre, pousadas na mesa da cozinha…a minha irmã e a minha mãe ainda dormem. Entretanto, fiz a cama e abri a janela do quarto…estava um dia lindo e o sol começava a entrar pelo quarto.

Vou em direcção à padaria perto da minha casa. Achei algo estranha a cara do empregado e algumas pessoas com que me cruzei pela rua.

Em casa, tomo o pequeno almoço. A minha irmã e a minha mãe que entretanto acordaram, dão os bons dias. Antes de sair para o trabalho vejo se tenho os livros para as aulas da noite. Naquele dia tinha teste de Contabilidade, duas horas, e estava com alguma preocupação para manter a nota. Levava algumas dúvidas para esclarecer com ajuda do chefe de escritório durante o dia, possibilidade que sempre me foi dada pelo meu patrão na altura e dono da empresa.
Quando me despeço com um até logo e começo a descer as escadas, sinto a porta do quarto do meu avô a abrir-se.

Berto, Berto…vem cá depressa, disse ele numa voz firme.

Já acordado? Ainda é cedo (digo eu) vou trabalhar…
Vem cá…Ouve-me com atenção.
Naquele momento começo a ficar preocupado. Reparo que está a vestir-se à pressa e ao mesmo tempo vai dizendo:

Houve um golpe de estado (fechei a porta do quarto)

O quê? Pergunto eu já sentado aos pés da cama dele.

Houve um golpe de estado. Tem cuidado na rua. Vai como se nada tivesse acontecido, mas mantêm-te atento. Vai com calma para o trabalho e não faças comentários em voz alta até teres a certeza…a certeza que finalmente chegou o dia, o grande dia da Liberdade.

Abraçou-me como nunca tinha feito e baixinho disse: Acho que chegou o grande dia! Vai para o trabalho, eu falo com a tua mãe.

E lá fui. Saí de casa a pensar na conversa e nos conselhos do meu avô, meu ídolo e companheiro de longas horas a ouvir, ás escondidas da minha mãe, a Voz de Portugal Livre. Muitas vezes deu uma “mãozinha” no jornal clandestino do movimento associativo ao qual eu pertencia e que a minha mãe nunca soube. Já na rua, reparo que os polícias da esquadra de Coronel Pacheco estão todos cá fora. Desço em direcção à Praça (trabalhava na Rua Mouzinho da Silveira) tomando o caminho da Rua José Falcão e depois Rua de Ceuta. Aqui, tive o meu primeiro susto. Várias pessoas a correr e diversos veículos militares a circularem. As minhas pernas tremeram e só as palavras do meu avô, ainda na minha cabeça, deram forças para prosseguir o meu caminho em direcção à Avenida dos Aliados. Não consigo passar devido a uma barreira de carros da policia. “Latas de nívea com merda lá dentro” era como chamávamos na altura. Vou pela Rua do Almada mas perto do Banco de Portugal sou outra vez impedido de prosseguir. Digo que vou trabalhar…olham para mim…acham que sou inofensivo e lá me deixam passar em direcção à Rua Mouzinho da Silveira.

Nesse dia, o ambiente no emprego foi tenso. As notícias chegavam aos poucos mas conseguimos trabalhar como se nada fosse. Foram horas difíceis, aquelas que passaram até à hora do almoço.

Hoje, ainda sinto o abraço do meu avô quando ao final do dia o encontrei na rua. Na altura com um sorriso enorme, dizia que finalmente tinha acabado a opressão, a ditadura, a perseguição, os presos políticos…o bilhete de identidade com anotação, a vermelho, do motivo pelo qual tinha estado preso…finalmente, o fim dos “bufos” nas escolas, nos empregos, no dia a dia…finalmente o fim da ditadura. Finalmente a Liberdade.


Foi assim que eu vi e senti o dia 25 de Abril de 1974. 
25 de Abril sempre!


[O original deste texto foi publicado pela primeira vez na net, no ailaife blog, no 31º aniversário do 25 de Abril.]

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[03/20]

Sons, Loucuras e Cheiros

O cartão de ponto acabou de passar pelo leitor…xau até amanhã. Queres boleia?... Não obrigada, vou directo para casa.

Buzinas…carros impacientes (condutores) em filas de trânsito… até amanhã, boa viagem. O autocarro passa com cuidado no cruzamento… há pessoas na passadeira e um bebé chora ao colo da mãe. A rua está mais sossegada agora que as obras acabaram. Um miúdo acelera na sua bicicleta (acho que vai dar com o nariz no chão) e um casal corre para apanhar transporte…não chegaram a tempo. O silêncio é maior.

A estação, o túnel…próxima paragem. As caras do costume, os penteados, o gel no cabelo, o baton, a saia, o decote (o bom tempo “despe” o pessoal) … um velhote tenta acender o cigarro, as prostitutas na esquina do costume…a pastelaria ainda tem bolos na montra… é tempo de gelados… os dias estão mais quentes.

Bate a porta…bate o coração…tic tac do relógio… a luz ficou ligada, malandros, e os chinelos ficaram no meio da sala.

Mais um dia, outro virá…o relógio precisa de corda…parado só está certo duas vezes por dia.

 [Após um dia de trabalho, há vinte anos atrás.]

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[02/20]

Coronel Pacheco

Não sei se este coronel foi ou não um valente… confesso que nunca me dei ao cuidado de saber quem foi ou o que fez para merecer o seu nome numa praça. Me perdoem os historiadores e amantes desta cidade. No entanto, jamais esquecerei a Praça de nome Coronel Pacheco. Nessa praça fui bebé, menino, criança, adolescente… fui jogador de bola, cowboy, índio, policia e ás vezes ladrão, fui ciclista, vencedor de corridas de atletismo, chorei, caí, esmurrei nariz (os joelhos metiam sempre dó) fiz cascatas na altura dos santos populares (tostãozinho pró S.João) marquei encontros para as primeiras saídas. Por essa praça passava a caminho das aulas (depois de um dia de trabalho), por essa praça ficava ás vezes à noitinha nas noites de sábado vendo as estrelas, a conversar com os amigos, cresci…nessa mesma praça hoje vejo o meu filho depois de ter tirado a carta de condução a estacionar o meu carro. São agradáveis estas recordações as brincadeiras de altura…mãos ao ar e 3 passos, quem me livra, prego, pião, escondidinhas, sameirinha, vira, nem mais um, bola de pano (a minha mãe era sempre a “vitima” por causa das meias). O arco, o futebol…grandes campeonatos naquele parque, grandes jogadores e apreciadores da bola por ali começaram e passaram (o “Carlitos” hoje treinador do Rio Ave foi um deles). Patins… como havia só um par e muitos pretendentes a dar uma voltinha só andávamos com um…em cada pé… assim dava para todos. Quando chegava a loucura do ciclismo e não havia bicicletas havia que improvisar… fazíamos um volante de  bicicleta em arame e corríamos com aquilo na mão… em grandes sprintes a imitar os ídolos da altura.

Mas gozo, gozo que superava todas as brincadeiras mencionadas (e outras tantas) era a “aventura” de fugir da polícia! Todos estes acontecimentos na praça do Coronel Pacheco aconteceram sempre nas “barbas” da polícia…com esquadra na praça (ainda hoje existe). Já sabíamos os turnos, as horas das rondas… eles sabiam quem nós éramos e aonde morávamos. Para mostrar serviço e ás vezes estragar um joguito ou outra brincadeira (com a polícia não se “brincava”) lá apareciam uma vez por outra…vinham pela esquerda, rodavam a praça pelo lado da faculdade de engenharia, colégio Almeida Garret… qual quê… muito antes disso já o “nosso vigia” alertava: “olha a moina”… era um gozo…acho que também eles (os policias) gostavam daquelas fugas/perseguições… fugíamos quase sempre pela Rua do Mirante  (ninguém fugia para casa que era ali ao lado), dávamos algum tempo para o polícia dar a volta completa ao parque e lá regressávamos novamente à brincadeira.

Claro que houve um dia que a coisa não correu tão bem como habitualmente… o polícia era novo, não tinha barriga e decidiu também “brincar” um pouco… decidiu dar a volta ao contrário, em hora diferente… claro que tudo isto originou uma interrupção de um grande jogo de bola (que nunca se acabou) e numa grande correria pela rua do Mirante abaixo… houve mesmo quem só parasse na Rua Miguel Bombarda enquanto outros só pararam mesmo em casa. Mas no outro dia lá estávamos outra vez.

São agradáveis estas recordações…histórias sem fim…a Alfaiataria Alexandre, o Posto da Caixa (raios x) a Encadernação, a Mercearia da D. Ivone (picolés de groselha que deixavam a boca pintada de vermelho) a Esquadra (claro) a Garagem que dava para a rua dos Bragas, a Escola Primária do Mirante (nas traseiras da Igreja Evangélica com o mesmo nome) com a professora D. Sofia e as suas 4 turmas (!) da 1ª à 4ª classe, a Faculdade de Engenharia o Colégio Almeida Garret…histórias, saberes, desgostos, alegrias, tristezas, gente que nos viu crescer (alguns já partiram) mas que acima de tudo ainda hoje (já lá não moro) não esqueço. Fazem parte do meu crescimento, da minha aprendizagem, do meu viver… fazem parte das minhas recordações…recordar é viver. Obrigado Coronel Pacheco.

[A referida praça ainda existe, assim como as recordações. Pouco mais...]

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[01/20]

Uma rapidinha

De regresso a casa após um dia de trabalho e a caminho da estação para apanhar o comboio (transporte rápido, prático e barato) apercebo-me que à entrada da estação, sentado no chão, está um homem (novo… pelo menos mais novo que eu) com uma pequena caixa e um bocado de papel com a seguinte inscrição: “Tenho fome”.
Que existem pedintes por esta cidade, não é novidade…que todos eles usam e abusam de todos os truques (porque não dizer marketing) para conseguir a “esmolinha” também já não é novidade, agora este “esfomeado” a pedir esmola de cigarro e maço de tabaco na mão… Mas enfim, lá deixei o esfomeado no seu canto.O comboio estava na hora de partir.
Durante toda a viagem fui a “falar” com os meus botões… somos mesmo um país de contrastes… homens novos de cigarro na mão a pedir esmola; Idosos que mereciam uma reforma digna e viverem com alguma qualidade, ainda a
  trabalhar porque o dinheiro não chega; Escolas com turmas com lotação acima do aceitável e…. professores no desemprego; Estádios novos de futebol e… escolas básicas sem um ginásio para os alunos praticarem desporto quando chove e as aulas de ginástica não podem ser dadas no recreio…Enfim, conversa da treta com os meus botões que raramente dão resposta  a estas questões.
Rapidinha?...Foi o que me veio à cabeça …é que está na hora do descanso.

[Pouco ou nada mudou. O pedinte deu lugar a outros... e eu já estou aposentado]

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@Ailaife Blog_by aflores

1 comentário:

  1. E cá estou eu para dizer que conheci o selo imediatamente. Ailaife é único, penso. E o Flores "pequenino" vai rumar nos textos. Espero que um deles seja uma ponte entre corações de amizade.

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